"Até os 21 anos tinha acontecido tanta coisa na minha vida que me dava a
sensação de já ter 40. Ia fazer o vestibular, mas a hepatite não
deixou. Tinha chegado a Rio Branco com 16 anos, em setembro de 1975
(Marina cresceu em uma palafita num seringal a 70 km da capital do Acre;
perdeu a mãe aos 14 anos e duas irmãs aos 15, vítimas de sarampo e
malária). Em 79 já tinha terminado o 2.º grau. Fiz Mobral, supletivo do
primário, do 1.º e do 2.º grau. Trabalhei como doméstica e morei num
colégio de freiras.
Vejo minha trajetória até essa época como uma espécie de tessitura,
aquela parte do cesto que vai definir tudo aquilo que o cesto vai ser
depois. Ali consegui integrar as marcas da minha memória, baseada no
saber narrativo que veio comigo do seringal, às coisas que aprendi no
contato com a cidade. Aos 19 anos, tinha descoberto a Teologia da
Libertação, o Chico Mendes. Cheguei aos 21 envolvida com o movimento dos
seringueiros, com teatro amador. Minha ‘carreira artística’ foi breve,
me identifiquei muito mais como figurinista, mas foi lá que tive o
primeiro contato com grupos de esquerda. A escolha por fazer História
veio daí. Queria fazer Psicologia, que não tinha na época no Acre,
porque uma coisa que sempre me encantou é lidar com a alma humana.
História era lidar com muitas almas ao mesmo tempo, o coletivo delas
adensado nos processos históricos.
Entrei na faculdade em 1981, aos 21, casada e grávida. Tive minha
primeira filha, Shalom, aos 22, durante uma greve na universidade.
Continuava nas Comunidades Eclesiais de Base, no grupo de teatro. Também
trabalhei com carentes na Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor.
Marxismo
Chegar à universidade era uma conquista (passei em 18.º lugar) e ao
mesmo tempo intimidava. Era um momento ainda da ditadura e foi marcante o
contato com o marxismo-leninismo. O Brasil ainda vivia a supernova do
marxismo-leninismo. Ele já estava ruindo nos países do socialismo real,
mas o brilho da supernova era muito forte na América Latina.
Estava envolvida também com o Partido Revolucionário Comunista,
clandestino. Tinha lá o Tarso Genro, o Genoíno e o Marcos Rolim. Tive um
envolvimento imediato com o movimento estudantil da época, dentro de
uma de suas muitas tendências, a Caminhando.
No primeiro ano, trabalhava com menores à tarde. De manhã ia para a aula
e à noite costurava, para ajudar na renda. No segundo ano, já dava aula
no colégio das freiras e em mais duas escolas. Aí veio todo o movimento
de fundação da CUT, os empates (em que os seringueiros protegiam
árvores com os corpos, para impedir sua derrubada) em Xapuri com o Chico
Mendes. Me formei em quatro anos. Queria fazer mestrado em Teoria da
História, mas teria de ir para São Paulo ou Rio. Prestei para Economia.
Fiz um ano, em 85, e parei. Estava muito envolvida com movimentos
sociais, o trabalho de professora, os dois filhos e com a entrada no PT,
que ocorreu naquele ano.
Quando cheguei a Brasília, em 95, fiz um semestre de Psicologia, mas não
tinha como, já era senadora. Uma coisa é a pós, com aulas dois dias por
semana. Graduação não dá. Tinha sido eleita pelo povo do Acre, não
podia faltar às sessões. Imagine: ‘Ah, a senadora está na escola e
perdeu uma votação importante.’ Isso não serviria de justificativa.
Ritmo maluco
Mas fiz pós em Teoria Psicanalítica na UnB, terminei em 2007, num ritmo
maluco, estudando em aviões ou de madrugada. Como gosto de trabalhar com
educação de jovens e adultos, fiz especialização em Psicopedagogia na
Católica de Brasília. Antes de terminar, entrei noutro curso, dado na
Argentina por uma psicopedagoga muito respeitada, a Alicia Fernandez.
Não consegui terminar em 2010, por causa da campanha eleitoral. Terminei
em outubro o último módulo, em Buenos Aires, estou na fase de escrever o
trabalho.
Nunca nenhum professor me deu colher de chá. Até porque, para mim,
quanto mais amigo do rei, mais alta é a forca. Uma vez fui para a
Noruega, para uma reunião sobre clima. Tinha de apresentar um trabalho
na volta. Cheguei às 9 da manhã no aeroporto, uma colega deu carona até a
UnB. Tinha virado a noite no avião finalizando o trabalho. Apresentei
com minhas colegas, sob o rigoroso olhar do competente professor Luiz
Celes, e foi muito bom.
Nunca parei de estudar. Já estou em outro curso, Autorias Vocacionais,
com o grupo da Argentina. Geralmente trabalhamos com jovens o conceito
de orientação vocacional. E esse grupo desenvolveu a ideia de autoria.
Você não orienta a vocação. Faz um processo, no qual o jovem vai
descobrindo a vocação. Perderei um módulo porque vou, em abril, para um
intercâmbio no MIT, dar palestras, conhecer experiências, principalmente
em sustentabilidade. Meu sonho é ser psicanalista, mas aí entra um
conflito ético. Só vou trabalhar com isso se um dia sair da política.
Unidade de serviço
Acho que, quando se é jovem, é preciso dar atenção aos fios que aos
poucos vão ajudando a tecer a base sobre a qual fazemos as escolhas
presentes e futuras. Eles estão presentes o tempo todo, na maioria das
vezes, onde menos esperamos. Meus fios foram a vida com minha avó, meu
pai, meu tio xamã, minha mãe e irmãs. Nasci em meio a uma verdadeira
unidade de serviço. Minha avó era parteira, andava horas no mato para
fazer parto. Via meu pai ficar a semana cortando seringa, andando 14 km
por dia, mas pegar o sábado e domingo para aplicar injeção em quem
precisava. Fazia contas no seu caderninho e ensinava às pessoas como não
ser enganadas no peso da borracha.
Meu tio era mateiro, sabia fazer trilhas, achar pessoas perdidas. Era um
xamã diferente, não exercitava a cura. Morou com os índios, vivia uma
opção espiritual xamânica que aprendeu com eles no Alto Madeira.
Ensinava sobre chás, ervas e, mais raramente, coisas que, segundo ele,
tiravam o azar das pessoas. Era ferreiro, carpinteiro, fazia uma
cestaria maravilhosa, tudo de graça. Minha mãe era excelente costureira.
Fazia roupa de festa para batismo, casamento e até mortalha.
Todos esses serviços tinham como valor uma única moeda, sem a qual seria
impossível suportar vidas tão marcadamente Severinas. Foi dessa unidade
que tirei os fios que tecem até hoje minhas escolhas. Daí vêm os
princípios e valores que me fazem sentir e viver o que faço, como um
serviço."
Marina Silva
Marina silva, formada em história, vereadora, senadora, ministra do meio ambiente, candidata a presidência da republica, considerada uma das 10 pessoas que podem mudar o mundo.Via, www.universitariosacimadamedia.com.br
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